quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Cíclope

Percebera o dom ainda criança. Sentia a tristeza dos olhos perdidos, as dores dos olhos sofridos, o cansaço dos olhos caídos, os desvios dos olhares mentirosos, os anseios vazios dos olhos fúteis.

Capturava o interior de qualquer um, desde que conseguisse uma cruzada de olhares, mesmo que por um pequeno instante. O ódio dos olhos fumegantes, a doçura dos olhos que piscavam lentos, a esperança nos que fitavam o horizonte.

Saber de tudo isso, desde pequeno, o fez diferente. A extrema sensibilidade do olhar sobre o olhar alheio, o transformou num tímido. Os desejos dos olhos da carne, a insegurança dos olhos nervosos, a força dos olhos maléficos, a tranqüilidade do olhar sereno. Como o de seus pais o botando na cama, todas as noites para dormir.

Usava o dom em beneficio próprio, lógico. Não havia como ser diferente, quando percebia o lograr no olho do malandro, o preconceito no olho do ignorante, a ordem no olho do dominante. Mas o fizera também em prol dos amigos, salvando-os dos olhares de encrenca.

Precisava apenas administrar o dom. E, já há algum tempo, sentia que, para tal tarefa, precisava, ao menos uma vez por dia, bater o olho num olhar sereno como o que o embalava nos primórdios. Não era difícil.

Sentia-se Deus por entender como ninguém do sutil jogo das expressões faciais.



Percebera tarde o fardo. Quando não conseguia se desvencilhar da tristeza dos olhares perdidos, das dores dos olhos sofridos, do cansaço dos olhos caídos, dos desvios dos olhares mentirosos, dos anseios vazios dos olhos fúteis. Capturava o olhar alheio e fazia dele, o seu.

Começou a andar mais cabisbaixo que de costume, mas a curiosidade e o hábito o faziam levantar a cabeça, achando que o próximo olhar seria sereno, e assim ele terminaria o dia como desejara, como precisava. Era cada vez mais difícil encontrar um. Assim, muitas vezes adormeceu com o olhar dos ansiosos, dos miseráveis. Abusou de outros com olhares malfeitores. Decepcionou-se consigo.

Sentia-se Diabo, tamanho sofrer.



Percebeu que era uma mistura de olhares de fora para dentro, mas não conseguia descrever o próprio. Quais das características absorvidas pelo dom/fardo eram suas?

Fitou-se no espelho por horas. Não entendia suas nuances. Não se enxergava. Não se via. Não se penetrava.

Tentou o vídeo, a fotografia. Não se revelava.



Foi encontrado caído, sem o olho direito e com sangue nas mãos. Na perícia e autópsia a confirmação. Arrancara o próprio olho e o engolira.

- Era louco – saiu pela boca o olhar taxativo do legista.
O Destro

6 comentários:

coisasqueeuvivendo disse...

Estou lendo "O Lobo da Estepe" do Hermann Hesse e numa parte ele faz uma análise interessante do olhar sobre si mesmo, usando a alegoria do espelho. Depois tem outra reflexão sobre o suicídio igualmente boa.
Lembrei destes dois trechos ao ler seu post. A figura de arrancar e engolir o próprio olho é impactante. Consumir-se de si mesmo, suicidar-se com o seu excesso, preencher-se com seu dom. Consumação do eu pelo ego...Fascinante!!

Gabi disse...

Quando deciframos os outros,acabamos nos transformando em enigmas pra nós mesmos.

Como sempre,perfeito.

parabéns ao Destro e ao Canhoto.

Sou fã desse blog

voltarei sempre

;**

O Antagonista disse...

Mais uma vez, um show!!!

Bela descrição de como é tênue a linha que separa um dom de um fardo... alías, há dons que são verdadeiros fardos para àqueles que o possuem. Mistérios da vida, vai entender.

Belíssimo texto, parabéns.

Sergio disse...

na minha opinião vc está cada vez melhor, achei engraçado nosso assunto no msn e agora ler isso....enfim...vou no aurélio ver o que quer dizer exatamente engraçado..hauhahuaha

MaxReinert disse...

... e assim vamos. Nossos dons hora são bençãos, ora maldições... como nossa consciência!

Lindo texto!!!!

Sabia que Édipo, quando descobriu o que havia feito também se cegou????

Anônimo disse...

interessante aqui!
gostei!

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Ps: sou canhoto


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